sábado, 22 de março de 2014

Predadores


Impossível definir em que momento a realidade
começou  a se afastar
a partir de que gesto, olhar, palavra
foi cruzado o perigoso portal dos sonhos
dos desejos

Observo teus olhos
que se fundem
confundem
olhos de transpassar sombras
lobo à espreita
olhos de queimar almas
dragão em céu noturno

Predadores
duelamos em círculos
na sutil dança da caçada
no intenso jogo dos desejos
no prazer desta estranha tortura

Predadores
desafiando  oráculos
nestas perigosas noites
em que a  Lua cheia
insensatamente se embriaga em Scórpio . 


- Helena Jorge - 

Passear em teu corpo


As almofadas brancas e macias do sofá
se transformam em nuvens
onde nossos corpos se confundem
nesta noite morna e de céu negro de outono

Dança de peles
de cheiros
de toques
de sabores

Os pássaros rosados dos meus seios
voam no céu da tua boca
brincam de pegador com tua língua.
minhas mãos
ansiosas serpentes
deslizam pelo teu peito
buscando o desejado caminho

Som de zíperes que se abrem
botões que saltam
na pressa dos que se desejam
na ansiedade da entrega

Teu corpo aprisiona o meu e
nos perdemos
anjos caídos
nos labirintos dos nossos desejos.

- Helena Jorge –


segunda-feira, 17 de março de 2014




Hoje
estou assim meio Medusa
meus cabelos-serpentes
( descrentes )
descansam ao sol
répteis capilares
aquecem seu sangue
(mar de Java)
gaivotas voláteis
diluem-se no ar


Helena Jorge

Meus Rituais




É madrugada. Hora em que escrevo.
Por que espero a noite? Talvez porque seja o único momento em que me encontro.
Ou reencontro, pois vivo me perdendo dentro de mim.
Apenas a luz de uma vela ilumina o meu quarto.
Som. Suave o bastante para que eu possa senti-lo caminhando pelas minhas veias... Lenta e obstinadamente. Uma paz estranha e lúcida me invade.
Solto os cabelos. Gosto da sensação de liberdade ao senti-los soltos, esquentando minha nuca, descendo pelas minhas costas. Aspiro o suave perfume que se espalha ao meu redor.
Os gatos
Sim, os gatos. Pressentindo a chegada deste momento, deitam e me observam - cientes de seu papel neste ritual quase que diário - olhos brilhantes, refletindo a luz da vela.
Estou pronta.
Ser ainda larval, experimental, que teme entrar em um universo desconhecido.
Em algum beco sem saída.
Começo a escrever e um desejo intenso, agudo, toma conta do meu corpo.
Ah, o que seria de mim sem os rituais ?

- Helena Jorge -

Irrealidade




Imenso tapete de folhagens coloridas.
Floresta que invade o espaço obscuro da sala...
Deitada, repouso o meu copo nu sobre as flores, sinto na pele o toque suave delas.
Adivinho o teu rosto que emerge da sombra...
Me contemplas.
Tua aproximação causa um estranho alvoroço dentro do meu corpo e é como se milhões de borboletas finalmente conseguissem romper o casulo que as aprisiona e saíssem, asas ainda úmidas, a voar loucamente dentro de mim...
E assim como a mais fina seda, meu corpo vai bebendo os desenhos do tapete... Ramos e flores criam vida e crescem, avançam sobre mim...
Tatuagens.
Mergulhas em mim – pescador de pérolas.  Ruge o mar em nossos corpos e o ar alcança uma intensidade quase insuportável...
Sinto como se toda a minha vida estivesse resumida neste instante irreal...

Cavalos alados, medusas, unicórnios, pombas giras e dragões
emergem do tapete ...
passeiam  em nossos corpos...
Sobrevoam alucinados e dançam freneticamente sobre nossas cabeças...
Uma serpente dourada nos enlaça, nos une ainda mais.
Personagem que nos desvenda e cria.
Recria.

Eternamente.

- Helena Jorge - 

Lobo



Em teu olhar transpassa
lascivo
um brilho fugaz
Profano
Em tua boca se insinua
depravado
um sorriso de Lobo
Semeia loucura
O tempo voa
como em sonho
e nos debruçamos
sobre o conhecido
abismo
Palavras e corpos
sons e cores
aromas e sabores
tudo se mistura
se funde
confunde

Numa celebração
intima
incontrolável
de nosso
prazer.



- Helena Jorge - 

Décimo Quinto Andar


Longa noite solitária em que o vento do outono
mais  fere que refresca.
O corpo todo queima,
como se o suor que lhe escorre dos poros
se transformasse em veneno.

Da janela do quarto ele observa a noite
o movimento das pessoas  que
se assemelham a formigas
vistas daquele décimo quinto andar...

O perfume dela ainda habita em seu olfato
instiga seus sentidos
lhe causa tremores.
Ele fecha os olhos e pode sentir sua presença
o toque quente das bocas...o roçar das línguas...
a dança dos corpos...

O olhar se perde pela noite
seus pensamentos indisciplinados viajam até ela.
Alguns momentos atrás era no corpo dela
que ele se perdia...

Então, assim meio que enfeitiçado,
ele passeia as mãos pelo próprio corpo
acaricia sua pele nos lugares onde pouco antes
ela estivera.
Percorre caminhos que foram dela.
Ali, naquele lugar
isolado de qualquer tipo de contagem
de tempo ou de horas
ele arde de desejo.

- Helena Jorge - 

Entre Atos



Tuas pernas me aprisionam a cintura.
não sei precisar o momento em que
a dança de gestos começou
pouco me importa

Enfeitiçada pelo brilho que se faz em teus olhos
passeio minhas mãos pelas tuas coxas
trilho conhecidos caminhos
brinco de abrir clareiras entre teus pêlos
com minhas unhas
espreito um leve tremor em teu sorriso

A noite é de calor perturbador
entra pela janela um vento quente que me bafeja a nuca
empurra minha boca de encontro à tua
nascem flores em nossas línguas

Dos corpos, agora unidos
alça-se um lancinante perfume
sentimentos em tumulto
frases incoerentes

Demônios e abstrações
rondam nossos corpos
embriagam-se com nossos
desvarios

Roleta russa de desejos navegam pelos ares
e em silêncio ardem na noite

- Helena Jorge - 

Ritual para um amigo




Estamos bem próximos. Te observo.
Distraído, assim meio ausente deste universo, você mexe na fruteira sobre a mesa. Vai pegando cada fruta, uma a uma, cuidadosamente.
Observa atento cada detalhe, parece tentar descobrir algum segredo nelas.
Em seguida, fecha os olhos e como se fosse um ritual secreto, aspira demoradamente cada pera, cada maçã.
Me perco observando os teus movimentos.
Passam-se as horas, você já se foi.
Talvez embalada por uma saudade meio indisciplinada, vou até a fruteira e inicio o mesmo ritual:  Pego cada fruta, olho , aspiro demoradamente...Tento refazer seus gestos e, desta forma, descobrir o que sentiu naquele momento.
Fecho os olhos e aspiro
Longamente
O aroma da pera se mistura à lembrança do teu cheiro.
Trinco os dentes na polpa macia e sorvo um pouco da tua alma.
Da essência dos teus gestos.
Dos teus desejos.
Enlouqueço placidamente.
Devaneio.
Qual o aroma do teu olhar?
E qual é o sabor da tua voz?
E a textura do teu sorriso? Qual será?
Que som terá a tua pele?
E teu desejo?
Me diz 
Qual é a cor do teu desejo?


- Helena Jorge - 

A Hora entre Cães e Lobos




Início da noite
Momento mágico, em que a maré do anoitecer vem lentamente cobrindo de negro a paisagem
Hora em que minha alma transita errante, entre o Cão e Lobo
Hora que meus Cães se recolhem aos seus abrigos seguros e dão espaço aos meus Lobos
Estes, cientes que é chegado finalmente o momento, começam a sair lentamente de seus esconderijos, farejando a noite quente e de Lua perigosamente cheia
Meus Lobos estão famintos de Lua
Os observo caminhando, pêlos eriçados, a caminho da noite. Posso adivinhar suas sombras errantes por entre ruas e becos
Eu?
Nesta primeira noite de Lua cheia de final de inverno - momento de juntar meus pedaços – sinto tua falta
Minha inquietude se agrava
E no silêncio da noite, minha boca silencia a tua
No silêncio do quarto meus olhos mergulham nos teus
Nossas línguas brincam nos jogos de avanços e recuos – Mar que arrasta a areia, no seu vai e vem
Ser abissal deste oceano
Nada mais é real

- Helena Jorge -